O desvirtuamento sistemático do Sistema Financeiro Habitacional – SFH

A questão da habitação nunca foi uma matéria nova no Brasil ou mesmo no mundo. Em verdade, habitação e abrigo sempre foram um ponto fulcral na vida das pessoas – eis que correlacionado a elas há uma sensação de segurança, conforto e estabilidade.

Um dos principais marcos relativos à Habitação, no Brasil, foi a criação do Sistema Financeiro Habitacional (1964). Criado para financiar a construção e aquisição de imóveis residenciais e combater o déficit habitacional (principalmente para as classes de média e baixa renda), foi o mesmo responsável por massificar o “Crédito Imobiliário”.

Apesar da busca por um objetivo nobre – acesso à moradia digna para milhões de brasileiros –, como muitas outras coisas no Brasil, desde sua origem há problemas na sistemática.

 

O SUSTENTÁCULO DO SFH – FGTS – DECRETO-LEI 5.1076/66

O principal sustentáculo do SFH é o FGTS.

Para se entender melhor a questão, necessário entender que o FGTS foi uma “solução” criada em meados da década de 60 como forma de substituição ao Sistema de Estabilidade no Emprego.

Seu principal objetivo era proteger o trabalhador demitido sem justa causa, acumulando mensalmente valores feitos pelo empregador em uma conta vinculada. Contudo, a sua própria existência criou – de uma hora para outra – um enorme volume de Dinheiro em Bancos Públicos [Caixa Econômica Federal – CEF]

Veja, portanto, que o SFH foi o caminho encontrado para que instituições financeiras se utilizassem de referido “Fundo” – por meio da hipoteca.

 

A HIPOTECA – DECRETO-LEI 70/66

Com a criação do FGTS, de uma hora para a outra, surgiu um enorme Fundo destinado a assegurar o trabalhador em situações absolutamente específicas, e que não poderia ser movimentado.

Novamente com um nobre objetivo em mente, buscou o governo se valer de referido Fundo para estimular a construção civil e a aquisição de imóveis pela população – a qual realizada por meio da Hipoteca.

Dessa forma, era concedido um Crédito garantido pelo Imóvel objeto de aquisição ou no qual seria edificada uma construção. Com o integral pagamento do empréstimo, era dada a baixa na Hipoteca.

Para a hipótese de atraso no empréstimo, era o imóvel levado a Leilão Judicial – autorizado ao Devedor o pagamento do Atraso e a Regularização do contrato.

Destaque-se que havia um equilíbrio entre Credor e Devedor – na exata medida em que se prestigiava o Crédito [o qual fatalmente seria pago, seja por meio dos pagamentos contratados, seja por meio da execução da garantia], bem assim a manutenção do Contrato.

Os maiores desafios encontrados no SFH e na Hipoteca era a elevada dependência de recursos do FGTS e Poupança [também utilizada em Créditos Imobiliários]; a restrição ao valor máximo dos Imóveis; e a inadimplência elevada e a demora na execução da garantia – o que, por vezes, burocratizava e desestimulava a concessão de Crédito.

 

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – LEI 9.514/97

A Resposta legislativa aos desafios encontrados na hipoteca foi a criação do SFI e da Alienação Fiduciária em Garantia para Bens Imóveis [instituída pela Lei 9.514/97].

Dessa forma, o governo buscou estabelecer uma nova forma de financiamento [admitindo a captação de recurso de outras fontes que não o FGTS ou Poupança], com uma maior participação de agentes privados.

Também, cessou-se a limitação à regulação aos juros (até então regulados pelo governo) – admitindo que os mesmos fosses determinados pelo Próprio Mercado.

Em substituição à Hipoteca (que demandava uma Ação judicial) foi instituída a Alienação Fiduciária (a qual permitia a execução puramente administrativa da garantia – com Leilões Extrajudiciais).

A maior diferença, contudo, foi o público alvo de referida medida: classe média e média-alta.

Em suma, forte no boom imobiliário observado nas décadas de 60, 70 80 e 90, o mercado financeiro passou a enxergar o mercado imobiliário como um grande ativo a ser explorado.

E foi precisamente neste ponto onde se observou uma guinada de 180o na finalidade e funcionamento do SFH e do Crédito Imobiliário como um todo.

 

PROBLEMAS DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO – LEI 13.465/2017 E LEI 14.711/2023

Instituída com a Promessa de diminuir os custos do financiamento no Brasil em razão da maior agilidade na recuperação da Garantia, a Alienação Fiduciária, desde sua origem, já apresentou problemas.

O principal problema é que a legislação que a instituiu constitui verdadeira colcha de retalho de diversos diplomas legais – alguns, sequer contemporâneos à Constituição Federal de 1988.

Uma das principais críticas à Alienação Fiduciária é a violação ao Princípio da inafastabilidade da Jurisdição – pelo qual, ninguém pode ser privado de sua liberdade ou propriedade sem o devido processo legal [CF/88, art. 5º, LIV]. Essa, contudo, é apenas a ponta do iceberg.

Mais complicado que a sumária violação à Ampla Defesa e Contraditório, contudo, é o vilipêndio às principais razões que autorizam a própria existência do SFH: o Acesso à Moradia Digna.

Isso porque, com a implementação da Alienação Fiduciária, virtualmente cessou-se a concessão de hipoteca para a aquisição de Moradia Própria – passando a ser amplamente utilizada a Alienação Fiduciária em Garantia.

Por esta modalidade de garantia, no ato da aquisição do imóvel, é o mesmo transferido ao Credor [constituído em Alienação Fiduciária], o qual se compromete a restituir a propriedade plena do Imóvel após o integral pagamento do contrato.

Para a hipótese de atraso pelo período de carência contratual (normalmente 30 dias), é o devedor intimado para, no prazo de 15 dias, quitar as prestações em atraso, sob pena da “Consolidação da Propriedade [ou, em outras palavras: sob pena do perdimento do Imóvel para o Credor]” (Art. 26, caput e §1º da Lei 9.514/97).

Realizado o pagamento no prazo de 15 dias em cartório, é o contrato de financiamento reestabelecido (art. 26-A, §2º da Lei 9.514/97).

Ausente o Pagamento e Consolidada a Propriedade, será o Imóvel levado a 2 Leilões Extrajudiciais (art. 27, 1º e 2º da Lei 9.514/97): o primeiro pelo valor de avaliação contratual atualizado; e o segundo pelo valor da dívida somada aos custos da execução e eventuais débitos incidentes sobre o Imóvel.

Note-se, contudo, que há uma série de desequilíbrios que permeiam a formatação de execução da garantia.

A primeira delas diz respeito ao Atraso.

Pela Hipoteca, era autorizado o pagamento do atraso e o reestabelecimento do contrato a qualquer tempo até a data do Leilão Judicial. Na Alienação Fiduciária, não há dispositivo algum autorizando ou proibindo esta medida.

Especificamente acerca disso, e com base na finalidade da norma [acesso à moradia própria] o entendimento que vigorava até meados de 2017[1], era de que ao Devedor era possível o Pagamento do Atraso até a data de assinatura do auto de arrematação [em fina sintonia para com a origem de todo o sistema: o SFH].

E, referido entendimento apenas efetivava a finalidade do SFH e SFI: De um lado, ao Credor era plenamente autorizada a Execução Extrajudicial da Garantia para a hipótese de não pagamento. Ao mesmo tempo, prestigiava-se a continuidade do Contrato [não raras vezes a ser pago em 35 anos], eis que ao Devedor era autorizado o pagamento do atraso até a data dos Leilões Extrajudiciais. Em outras palavras: havia certa flexibilidade para a hipótese de atraso, considerada a extensão da duração do contrato e as imprevisibilidades da vida em sociedade (desemprego, óbito na família, doença, etc).

Com o advento da Lei 13.465/2017, voltou a ser debatida esta questão, eis que instituído o famigerado “Direito de Preferência” (Art. 27, §2º-B da Lei 9.514/97).

Por este, consolidada a Propriedade do Imóvel, ao devedor é autorizada a “recompra do Imóvel Consolidado” pelo valor da dívida somado às despesas e encargos incidentes sobre o Imóvel até a data de assinatura do 2º Leilão Extrajudicial.

À semelhança do restante da Lei 9.514/97, nota-se que as alterações da lei 13.465/2017 e 14.711/2023 são também uma série de colcha de retalhos.

Do ponto de vista jurídico, sequer faz sentido se falar em “Direito de Preferência até a data do 2º Leilão Extrajudicial”, eis que a rigor, o imóvel não estaria na esfera patrimonial do Credor de forma plena, tratando-se de Garantia Fiduciária [o que só aconteceria após os 2 Leilões Extrajudiciais] – afinal, é vedado em nosso ordenamento jurídico que a garantia seja tomada em pagamento da dívida (art. 1.365 e 1.428 do CC).

O pior, contudo, é que a implementação deste suposto “Direito” passou a ser usado como argumento para afastar o “Direito à Purgação da Mora até a data de Assinatura do Auto de Arrematação” [pagamento do atraso até a data dos Leilões] amplamente já reconhecido em nossos tribunais.

O mais surreal da situação toda, contudo, é a constatação de que os Credores [supostamente os maiores interessados no recebimento do Crédito] vêm amplamente se opondo ao reconhecimento de que poderia o devedor pagar o atraso (com todos os encargos moratórios) e reestabelecer o contrato nas condições originalmente pactuadas – em verdadeira afronta para com a finalidade do SFH e SFI.

E esse é apenas um dos pontos polêmicos da Alienação Fiduciária em Garantia.

A segunda grande polêmica que permeia esta modalidade de garantia – e que reforça a opinião de sua inconstitucionalidade – diz respeito à hipótese na qual o Imóvel não é Vendido em Qualquer dos Leilões Extrajudiciais.

Explico. Pela redação original da Lei 9.514/97, era disciplinado que se o Imóvel fosse vendido por valor superior à dívida, deveria a diferença arrecadada ser restituída ao Devedor. Para a hipótese de o lance ofertado ser insuficiente ao pagamento da dívida, havia a expressa previsão de que a dívida era extinta. Ausente ambas as situações, a Lei era silente acerca do que deveria acontecer.

Neste contexto, o entendimento fixado em nossos tribunais[2] era de que permanecendo o Credor com o Imóvel em pagamento da Garantia, deveria restituir ao Devedor a diferença entre tais valores, pena da caracterização de Enriquecimento sem causa.

Com o advento da Lei 14.711/2023, alterou-se a disciplina legal acerca desta matéria. Pela nova redação, ausente lance em qualquer dos Leilões, pode o Credor permanecer com o Imóvel em Pagamento da Obrigação [independentemente do valor da garantia e da dívida].

Vai-se além. Sendo o valor do Imóvel inferior ao valor da dívida, é autorizado ao Credor executar referida diferença do Devedor.

Há diversos problemas nesta alteração normativa.

O primeiro deles é a institucionalização do enriquecimento ilícito e a criação de um “pacto comissório” travestido – na exata medida em que se autoriza o Credor a ficar com o Imóvel pelo valor da Dívida [ordinariamente inferior ao valor da garantia – eis que parte do contrato foi pago], pese o próprio Credor reconhecer valor diverso para o Imóvel (Valor de Avaliação Contratual).

O segundo problema é o tratamento desigual dado às partes, sendo de sobremaneira mais grave o tratamento dado ao Devedor, que pode não apenas sair sem nada (independentemente dos valores já pagos – ao menos 20% do valor do Imóvel à título de entrada), mas com uma dívida [para a hipótese de o valor da dívida ser superior ao valor da garantia]. Igual tratamento não é observado face ao Credor, o qual pode adjudicar compulsoriamente o Imóvel de valor pelo valor da dívida [e, assim, experimentar lucro imobiliário].

Note-se, portanto que paulatinamente foram sendo criados mecanismos que vilipendiam a finalidade original do SFH a contar da implementação do SFI e da Alienação Fiduciária – com especial destaque: a) desregulamentação dos Juros [o que ocasionou súbito aumento do custo desta modalidade de crédito]; b) afastamento da fiscalização da execução da garantia da jurisdição (execução da garantia puramente administrativa); c) supressão ao Direito de Pagamento do Atraso a qualquer tempo até o Leilão Extrajudicial [Purgação da Mora]; d) institucionalização do locupletamento ilícito e pacto comissório travestido.

 

NADA É TÃO RUIM QUE NÃO PODE FICAR PIOR – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA EM PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS DE ACESSO À MORADIA PRÓPRIA

Conforme acima indicado, verifica-se que paulatinamente, o SFH [originalmente arquitetado para incentivar o acesso à moradia para as classes de média e baixa renda – por meio de crédito com taxa de juros regulamentada] passou a ser desidratado, com a implementação de inúmeras medidas em benefício à agentes financeiros privados.

Nota-se, ainda, inúmeros movimentos adotados em benefício a Agentes Financeiros em detrimento ao Cidadão.

Isso, no entanto, mostra-se mais problemático quando analisada a questão sob a ótica de Programas Governamentais de Acesso à Moradia – tais como “Minha Casa, Minha Vida” (tanto mais claro isso, quando considerada a existência de subsídios governamentais).

Isso porque, cercear as possibilidades de reestabelecimento do contrato implica em uma maior dificuldade do integral adimplemento do contrato – de sobremaneira quando considerado o prazo destas modalidades de contrato [por vezes de 35 anos] e as inúmeras intempéries da vida moderna [desemprego, doença, óbito, etc].

Pior.

Nota-se que a adoção de referidas medidas aprofunda ainda mais os problemas relacionados à habitação e mesmo a desigualdade social que buscava o SFH minimizar.

Trata-se de lógica cartesiana: Quem não tem recursos financeiros e depende de um financiamento para a aquisição de moradia própria se vale de Crédito Imobiliário [arcando com pesados juros] e se valendo do FGTS para tanto.

Operado atraso (aqui inclusas situações extremas), será esta pessoa submetida a procedimento de execução extrajudicial, tendo 15 dias para regularizar as pendências financeiras, sob pena de ser compelida a pagar a integralidade do valor do empréstimo à vista [“Direito de Preferência”].

Não se desconsidera que o Credor tenha que ser resguardado face a seu Crédito. Contudo, no entender deste jurista, parece extremo que só se admita o pagamento do atraso no prazo de 15 dias da Consolidação da Propriedade – e não a qualquer momento enquanto ainda útil ao Credor referido pagamento (leia-se: até a venda extrajudicial da garantia)

Igualmente extremo que seja autorizada a adjudicação da garantia pelo valor da dívida – em especial quando considerada a prática de construtoras de alienarem Imóveis com pacto adjeto de Alienação Fiduciária – não sendo raras as situações nas quais um mesmo Imóvel é alienado e retomado pela construtora [em razão de atrasos] por diversas vezes, em flagrante prejuízo à parte mais fraca da relação: o consumidor.

Afinal, não se está aqui a defender o inadimplemento contratual – pelo contrário: bate-se pelo cumprimento contratual, e, operado atraso, que seja admitido o pagamento do atraso devidamente acrescido dos encargos moratórios [de forma a não causar prejuízo ao Credor]

O que é inconcebível é que, após períodos de recessões econômicas, superinflação, pandemia, instabilidade institucional e governamental, impeachment – todos estes observados nos últimos 50 anos em nossa economia – não seja reconhecido que o atraso em um contrato de 35 anos seja algo plenamente passível de ocorrer, e que deva ser remediado com observância ao princípio da continuidade do contrato e da finalidade precípua do SFH, de sobremaneira quando considerada a sua função social de viabilizar o acesso à moradia própria.

 

REFERÊNCIAS

[1]

STJ, 3ª Turma, REsp 1433031/DF, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. 03/06/2014

STJ, 3ª Turma, REsp 1447687/DF, Min. Rel. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. 08.09.2014;

STJ, 3ª Turma, REsp 1462210/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. 18/11/2014

STJ, 3ª Turma, AgInt no AREsp 1286812/SP, Re. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, j. 10.12.2018

STJ, 3ª Turma, AgRg no REsp Nº 1.367.704-RS Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, j. 13/08/2015

STJ, 4º Turma, AgInt no AREsp 1.132.567/PR, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, j. 24.10.2017

STJ, 4ª Turma, AgInt no AREsp 1366880/PR, Rel. Min. MARCO BUZZI, j. 26/02/2019

STJ, 4ª Turma, AgInt no REsp 1.760.519/SC, Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, j. 17/09/2019

[2]

TJSP, 36ª Câmara de Direito Privado, AC nº 0013993-20.2011.8.26.0554, Rel. Des. WALTER CESAR EXNER

TJSP, 12ª Câmara de Direito Privado, AC e respectivos EDcls nº 127928-83.2015.8.26.0100 (/50000), Rel. Des. TASSO DUARTE DE MELO

TJSP, 33ª Câmara de Direito Privado, AC nº 1004723-46.2017.8.26.0100, Rel. Des. LUIZ EURICO

TJSP, 20ª Câmara de Direito Privado, AC nº 1007902-46.2016.8.26.0286, Rel. Des. ÁLVARO TORRES JÚNIOR